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Protestantismo: o que deu errado?




Durante a adolescência, embriagado com a experiência de conversão, cultivei um ardente e secreto desejo de emigrar para um "país protestante". Quando ouvia falar que 97% da população da Suécia era filiada à Igreja Luterana, ficava imaginando, deslumbrado, as multidões de pessoas superlotando os templos aos domingos, com a Bíblia debaixo do braço. Os países protestantes deveriam ser algo como "ensaios do céu": paz, amor, justiça e honestidade, todo mundo se tratando por "irmão".



Na universidade, lendo mais e conversando com viajantes, entrei em contato, chocado e decepcionado, com a existência da categoria de protestantes nominais, especialmente em igrejas ligadas ao Estado, com bispos nomeados e pastores funcionários públicos. Um velho pastor me falou que aqueles países se tornaram protestantes "por decreto", e que a fé não se transmite biologicamente às novas e esfriadas gerações. Na ABU, discipulado pelo pastor Dionísio Pape, fui aprender que existia uma outra estranha categoria de protestantes: os liberais. Enquanto os nominais pareciam crer de fora, os liberais descriam dentro da Igreja. Ele me falou da influência racionalista do iluminismo, via faculdades de teologia, nas universidades públicas, dos professores de teologia e clérigos profissionais que, embora chamados de luteranos, presbiterianos ou anglicanos, não acreditavam no que Lutero, Calvino ou Cranmer haviam escrito, inclusive as históricas confissões de fé de suas igrejas.

Isso era muito estranho para mim, então membro da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) - vinculada ao Sínodo de Missouri -, que eram luteranos "de mesmo", ou seja, continuavam a acreditar nos ensinos da Reforma Protestante. Então, fui descobrindo que em todos os ramos reformados (variando de país para país) havia os nominais, os liberais e os "de mesmo" (ora chamados de conservadores, ora de fundamentalistas). Ainda na universidade, tive os meus primeiros contatos com liberais daqui, de quem recebi impiedosas gozações por minhas conversas ingênuas sobre conversão. Em uma de minhas viagens ao exterior ouvi, perplexo, um cristão da Índia falar que um dos grandes obstáculos à evangelização do seu país fora o fato de que filhos de indianos que iam estudar na Europa enviavam para suas famílias livros de autores "cristãos" negando a divindade de Cristo, o nascimento virginal, os milagres, a expiação, a ressurreição, o que se constituía em um prato cheio a ser usado contra os missionários.

O tempo foi passando e fui conhecendo melhor - por meio de leituras, conversas e viagens - a multiforme "fauna" protestante, em que nem todos os gatos são pardos. Apesar de tudo, criado na Igreja Romana pré-Vaticano II, convertido por influência de adventistas do sétimo dia, batistas e presbiterianos, doutrinado na IELB e na ABU, cheguei ao anglicanismo, de linha dita evangelical, pelas mãos de John Sttot, com a mesma fé simples e a mesma vibração pela Reforma adquirida na adolescência. Por esses caminhos incompreensíveis da Providência terminei por ser bispo anglicano justamente no meio de uma batalha em que, em setores chaves dos países centrais, se nega a autoridade das Sagradas Escrituras, a unicidade de Cristo (um caminho, o nosso caminho, mas não o único caminho), em uma igreja sem doutrinas nem padrões de comportamento, unida apenas por tradições, "laços de afeição" e coreografias, uma espécie de sociedade lítero-recreativa vale-tudo.

A gente sempre se consola com a certeza de que, mesmo com a pecaminosa fragmentação denominacional, os pseudo-protestantismos e suas "sessões de descarrego", permanecerá sempre um remanescente fiel, e que o cristianismo ainda é pujante no hemisfério sul. Mas, para quem vibrou com as biografias dos reformadores, as confissões de fé e os catecismos, descobrindo a centralidade da Bíblia e da cruz de Cristo, com sua experiência de conversão, de novo nascimento, fica sempre a pergunta incômoda: o que deu errado com o protestantismo? E se percebe que as "conversões por decreto", a ligação Igreja-Estado, as faculdades de teologia influenciadas pelo iluminismo, formando mais teóricos do que pastores, a religião como tradição e o ministério como profissão, com os céticos dominando as máquinas eclesiásticas, o não-discipulado das gerações, concorreram para essa descaracterização e decadência.

Mas será que a preocupação com a soteriologia (salvação pela graça mediante a fé), escorada na autoridade de um texto - a Bíblia (detonada pelo iluminismo e seu filhote, o liberalismo) -, não se relacionou com um individualismo que confundiu "livre exame" com "livre interpretação", reformando sempre não as formas, mas o conteúdo? E deixou uma grande lacuna que foi a eclesiologia (a falta de uma doutrina sólida sobre a Igreja), inclusive com o abandono do episcopado histórico, ficando o protestantismo sem mecanismos adequados para a preservação da unidade e da verdade?


* Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife


Por Marcelo Esch Gomes

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